"Se o antropocentrismo tem ditado as normas do jogo dos seres humanos na terra, como se nada na ordem viva possuísse sentido se não fosse relacionado ao homem, suas necessidades, desejos e descobertas; se o ser humano criou uma civilização que na sociedade moderna se destaca pela lógica da dominação através da tecnologia, do homem sobre o homem, do homem sobre a natureza, infiltrando-se em todas as manifestações do ser humano; se a sociedade se estrutura ao redor da economia entendida como instrumento para uma produção ilimitada de riqueza através da exploração dos recursos da natureza, incluindo nela o homem; se todo desenvolvimento, mesmo que sustentável, corresponde a um fim econômico de aumento de produtividade e acúmulo de riqueza material, como podemos ousar em falar de plantar paz na terra?
Na realidade, cada um de nós, na sua forma e de acordo com seus talentos e descobertas, empreende esta tarefa. Alguns seres sentem a urgência e se dispõem a plantar paz na terra por meio da devoção ao Sagrado , outros são acordados após experiências dolorosas para uma visão e atitude diferente das normoses, outras são "gente da terra" e se mesclam com o verde e o maduro da natureza e já sabem plantar naturalmente a paz, outros desanuviam a vida inteira os fantasmas da opressão e lutam, lutam e lutam e assim também o plantio acontece, e há tantos outros seres..contudo, pode-se aspirar a uma vida na terra em que cada um desses movimentos seja acolhido, respaldado, estimulado por essa atmosfera que nós, seres humanos, criamos em nossa casa terra. A atmosfera que foi criada está oprimindo, matando e silenciando tantas e tantas maneiras de explodir a vida na trilha do movimento harmônico, e isto precisa ser transformado imediatamente.
Plantando Paz na Terra visa caminhar além da presença da semente em cada ser humano, visa possibilitar um ninho com chuva, sol e terra para que ela desabroche.
Na redefinição de uma nova forma de relacionar-se com a vida, fica evidente que o resgate do sentimento de inclusão na natureza (e não situando-a como um elemento externo possível de ser impunemente manipulado, transformado e destruído) é um ponto chave para a reconstrução destes valores. Ao falar do sentimento de inclusão na natureza, refiro-me à verdadeira condição de estar aqui, no exercício da tarefa da vida colocada para cada ser humano. Não há de surpreender ao leitor meu convite de lembrar-se de sua composição corpórea ou de seu limiar entre a vida e a morte, que é intrínseco às leis da natureza. É por isso que posso afirmar que a cura está na Terra, e, Agora, a única possibilidade é a aventura feita nela, em seu chão e a partir dela.
Trata-se de restituir no ser humano a visão de uma globalidade de acordo com a própria natureza, portanto, de acordo com a ordem viva. Falar em ordem viva implica em evocar o grande mistério que perpassa a cada segundo a nossa existência e nos torna parte e todo em um só compasso. Assim, a partir da re-ligação com a natureza caminhamos na direção de um reencontro harmonioso com nós mesmos. Esta harmonia requer um equilíbrio entre a realidade interna do ser humano e o externo em que ele convive. O ambiente externo é, por si só, uma complexidade de sistemas ecológicos, culturais e sociais que não estão em harmonia um com o outro. Como harmonizar estas dimensões entre eles e na interação com o homem para lograr este estado?
Ecoar no elo com o próprio planeta traz o sentido perdido de integração e deriva em atitudes de respeito direcionadas ao amor em todas as esferas. Quando nos alinhamos com nossa identidade maior na identidade ecológica, experimentamos, profundamente, nossa conexão com o todo, desencadeando um processo de cura dos nossos conflitos. Este elo traz, também, a felicidade do reconhecimento de que tudo está sendo oferecido constantemente para nós, pelo uni-verso, e que ao lado do sofrimento mundial há uma corrente real de harmonia que pode ser vivenciada e expandida por cada ser humano, se ele ousar a Grande Aventura Interior.
Assim, a solidariedade básica que nos une a tudo no universo principia pela dimensão interna de cada um consigo mesmo. E no ato de unir-se , une-se a todos e a tudo na terra e no cosmos. Essa experiência da Verdade enraiza e eleva o ser humano e aí o antropocentrismo já não têm mais o papel principal. Esta visão parte de um propósito de viver diferente do modelo que gerou a crise sócio-ambiental. Este propósito é a expansão da consciência do ser humano, baseado no propósito geral do universo em nós manifestado, aprendendo a caminhar de acordo com os princípios da lei da harmonia interna, através do instrumento material de nosso corpo, terra, planeta. O distanciamento ou desconhecimento deste propósito trouxe o conflito interno no homem, entre os homens e na natureza, gerando o estado atual do mundo.
E, novamente, as questões do século florescem, ferindo como gritos sem eco algum
Ousar falar de plantar paz no âmbito social passa pela necessidade de instituir o respeito aos direitos humanos que constituíram idealmente as regras do jogo para conseguir viver em equilíbrio. A situação é clara. Se medimos a qualidade de vida do ser humano através da quota energética, temos que, anualmente, um indivíduo em um país africano gasta 1.900 mj, no Brasil 16.000 mj e nos Estados Unidos, 344.000 mj. Referente à realidade brasileira, apenas um dado: 1% da população do Brasil detém 53 % da riqueza. Ora, com estes dados podemos falar de plantar paz sem cair em romantismos idealistas?.
Ainda, como nos deter a examinar a questão da paz social com os instrumentos da sociedade, sendo que esta foi gestada a partir de um pensamento materialista, determinista e causal, transformando-se em uma fábrica geradora de violência e destruidora da ordem viva? Como inserir-se neste quadro se a cultura da violência nega o trabalho conjunto no tecido social a partir ou da negação do outro para afirmar a identidade, ou a desqualificação do outro ou a paternalização sobre o outro? Como reinventar esta sociedade, se quem está socializando os novos cidadãos (sempre embasados nos modelos antigos de sistemas sociais e religiosos) é o narcotráfico, as seitas da 'nova era' (que promovem uma solução individual) ou o mercado como a estética capitalista? Enfim, de qualquer ângulo que olhemos este marco social, encontramos mais e mais evidências, não só da inversão dos valores que cultivam uma cultura de paz, mas da ênfase nos valores da cultura da violência.
E na esfera ambiental? Cerca de um quinto das 9 mil espécies de peixes de água doce do planeta desapareceu nos últimos anos. A cada dia 250.000 toneladas de ácido sulfúrico caem sob forma de chuvas ácidas no hemisfério norte. Cerca da metade da cobertura original de florestas foi perdida e a cada ano mais de 16 milhões de hectares desaparecem. Os dados falam por si.
Como ousar falar de plantar paz na esfera ambiental, se a dinâmica do mercado está toda apoiada na utilização dos recursos naturais deliberadamente? Como incluir perspectivas de desenvolvimento sustentável, se os motores internos que impulsionam este tipo de desenvolvimento na realidade são os mesmos que geraram a destruição ambiental? Como ir além da proposta teórica de respeito à natureza, se a ecoguerra inscrita na agenda do combate ao narcotráfico evidencia, como o sagrado dos frutos da terra, são, na mãos dos homens, profanados e ainda estirpados como sendo a causa dos conflitos armados?.
Ensaia-se um plantio
Como dito acima, o início do semear interno proporciona terreno fértil para que este quadro se transforme e este semear na esfera coletiva, como se sabe, é possível ser articulado através da educação nos vários âmbitos que formam o aprendizado sócio-ambiental do indivíduo. O aprendizado pode ser certamente esta brecha realista que possibilita a construção de uma cultura de paz nas esferas pessoal, social, planetária e universal se conciliarmos uma equidade nas possibilidades de todo ser humano de aprender. Aprender, aqui entendido, como aprender as ferramentas indispensáveis para relacionar-se com a vida, alicerçado no objetivo maior de expansão da consciência e do exercício da mesma em cada ato humano. Equidade não só no sentido de todos terem acesso a este aprendizado, mas, equidade também com relação aos que não conseguiram aprender além da visão do 'sistema' e que cegamente conduzem o planeta à destruição. Mantendo-se firme no sendero da busca do equilíbrio, pouco a pouco, pessoas e ambientes vão se encaminhando também para um processo de aprendizagem de paz.
Trabalhar no preenchimento desta brecha é de extrema importância para que novos comportamentos, pensamentos e valores sejam veiculados pelos seres humanos, como difusores naturais do sentido de Vida, abrangendo os diferentes níveis da realidade. Estas iniciativas devem ser acompanhadas de um processo de educação, recuperação e pesquisa contínua para desencadear mudanças reais no bojo das ações individuais e sociais, garantindo passos certeiros na meta da reintegração a um ciclo de equilíbrio. Foi a partir deste 'feeling' que o programa Plantando Paz na Terra nasceu, compondo sua meta e desafio."
Paola Charry Sierra-2000